A pedido do Ministério Público, Judiciário tem impedido leitura do livro sagrado e menção a Deus na abertura de sessões legislativas; especialistas rebatem decisões
Há cerca de cinco anos, o Ministério Público começou o que se pode chamar de uma “cruzada” contra a Bíblia e a invocação do nome de Deus na abertura das sessões de câmaras municipais espalhadas pelo país.
Uma das promotorias que mais trabalha para purificar regimentos internos que supostamente afrontam o texto constitucional é o Ministério Público de São Paulo e, até agora, já obteve sucesso em ao menos sete ações de inconstitucionalidade em câmaras de municípios paulistas.
Mas promotores da Paraíba, do Paraná, de Mato Grosso e de Santa Catarina também já colecionam vitórias na Justiça estadual para mandar as câmaras excluírem de seus regimentos os artigos que autorizam mencionar o nome de Deus na abertura das sessões legislativas, com fórmulas como “Em nome de Deus declaro aberta a presente sessão…” ou “Sob a proteção de Deus…”, e que permitem a leitura de um versículo da Bíblia.
O argumento dos promotores é que isso representaria um privilégio para as religiões cristãs em detrimento de outras e se configuraria como uma afronta aos ateus. Além disso, afrontaria o princípio do Estado laico, previsto na Constituição Federal, e por isso, nenhum rito político pode conter qualquer traço de qualquer religião.
Em um dos casos mais recentes, julgado em abril, o Ministério Público de São Paulo se insurgiu contra três dispositivos do Regimento Interno da Câmara Municipal de Bauru: o que permite a invocação da presença de Deus na abertura das sessões; o que prevê a leitura de um versículo bíblico; e o que estabelece que “a Bíblia Sagrada ficará sobre a Mesa, durante todo o tempo da sessão, à disposição de quem dela quiser fazer uso”.
Desembargador considera artigos constitucionais, mas vota pela inconstitucionalidade
Chama a atenção que o relator do acórdão, o desembargador Figueiredo Gonçalves, fez um voto considerando os artigos absolutamente constitucionais, mas, preferiu se render ao entendimento consolidado da Corte, que, a pedido do Ministério Público Estadual de São Paulo, vem sistematicamente derrubando os artigos das câmaras municipais que permitem invocar Deus ou ler a Bíblia.
“Ao meu sentir, ressalvado o douto entendimento contrário da maioria deste Órgão Especial, nenhuma inconstitucionalidade existe ao se invocar a proteção de Deus para os trabalhos de uma Câmara de Vereadores, ou Assembleia Legislativa. Isso não implica em associação do Estado com determinada religião, ou abala o princípio do Estado Laico”, escreveu.
Ele afirmou claramente que “os referidos artigos regimentais não violam o princípio da laicidade estatal, tratando-se de mero exercício das faculdades concedidas pelo povo a seus representantes, devidamente eleitos mediante o processo democrático”.
Como todo poder emana do povo, de acordo com a Constituição Federal, a conclusão é de que o regimento da Câmara de Bauru “apenas revela a vontade do parlamento”, e consequentemente do povo. Além disso, uma nova legislatura poderia alterar o atual regimento, se houvesse mudança de postura.
O desembargador lembra que o pedido de declaração de inconstitucionalidade do regimento nem sequer partiu de um vereador eventualmente forçado àqueles comportamentos, impostos nas normas impugnadas — mas do Ministério Público, que questiona a norma de maneira abstrata.
Por isso, sublinhou o relator, “nessas situações, não cabe ao Poder Judiciário interferir no legítimo exercício da democracia, sendo indevido o controle jurisdicional, por se tratar de matéria afeta à Câmara Municipal”.
Porém, mesmo convencido da constitucionalidade do Regimento Interno da Câmara de Bauru, o desembargador votou pela inconstitucionalidade da norma, “atento ao princípio da colegialidade”. O placar foi unânime e o Legislativo municipal ficou impedido, portanto, até mesmo de manter a Bíblia sobre a Mesa durante as sessões.
Até agora, o Tribunal de Justiça de São Paulo acatou pedidos do Ministério Público Estadual para impugnar leis de Araçatuba, São José do Rio Preto, Araraquara, Artur Nogueira, São Carlos e Engenheiro Coelho.
Magistrado diferencia Estado laico de Estado laicista
Em maio, o Tribunal de Justiça do Paraná acatou ação do Ministério Público e derrubou artigos do Regimento Interno da Câmara Municipal de Araucária (Região Metropolitana de Curitiba) que autorizavam a leitura da Bíblia antes do início da sessão. Por maioria, o tribunal entendeu que “a norma questionada prestigiou as religiões que professam os ensinamentos bíblicos em desfavor de todas as demais, violando os princípios da laicidade estatal e da isonomia”.
O voto vencido foi do desembargador Jorge de Oliveira Vargas, que distingue Estado laico de Estado laicista e explica, que no primeiro caso, como é o do Brasil, o Estado não pode preterir religiões e tampouco ser hostil à religião. “O Estado laicista é intolerante, é antirreligioso. Estado laico não equivale a Estado ateu. Estado laico é Estado de tolerância religiosa e de tolerância à não religiosidade”, ensinou.
No caso de Araucária, ele afirma que “a menção expressa à Bíblia, em meu sentir, possui caráter meramente exemplificativo, e reflete unicamente o fato de ser a religião Cristã a mais amplamente difundida na sociedade brasileira”, mas sem a intenção de obstar outras manifestações religiosas. “Tal restrição, aliás, sequer encontraria amparo na própria Bíblia, segundo a qual a nós humanos foi dado o livre-arbítrio, o que pressupõe, logicamente, a possibilidade de livre escolha religiosa (aí incluso o direito de em nada crer)”, discorreu Vargas.
Na Paraíba, decisões indicam “inobservância da laicidade estatal”
Na Paraíba, o Judiciário acatou ações do MP contra as câmaras de Bananeiras e Campina Grande. Em decisões unânimes, nos dois casos, julgados em setembro de 2023, prevaleceu o entendimento de que a leitura da Bíblia ou invocação de Deus configuram-se como “inobservância da laicidade estatal, da liberdade religiosa bem como ofensa aos princípios da isonomia, finalidade e interesse público”.
“Ainda que não haja obrigatoriedade de adesão à crença religiosa em si, a adoção de práticas religiosas por parte de órgãos estatais pode gerar uma percepção de favorecimento ou privilégio de determinada religião, violando a igualdade e a neutralidade estatal”, escreveu o desembargador Marcos Cavalcanti de Albuquerque, relator dos dois casos paraibanos.
Em Santa Catarina, o Tribunal de Justiça já fulminou, a pedido do Ministério Público, leis de Palhoça e Blumenau. No primeiro caso, a Corte considerou inconstitucional uma lei de 2021 que declarou “a importância da leitura de um versículo bíblico no início de cada sessão” e especificou que “a leitura deste versículo é extremamente importante para que Deus venha abençoar o bom andamento da sessão, bem como de todos os projetos a serem aprovados nesta casa legislativa por todos os vereadores”.
Para a Procuradoria-Geral de Justiça e para os desembargadores, mesmo sem estabelecer qualquer imposição de leitura da Bíblia, a norma é inconstitucional porque violou “o direito à liberdade religiosa e ao livre exercício dos cultos religiosos, o princípio da laicidade do Estado previsto no artigo 19, inciso I, da Constituição Federal”. No caso de Blumenau, a decisão, também tomada em 2022, foi semelhante.
No Mato Grosso, tribunal proibiu exibição de Bíblia
No Mato Grosso, o Judiciário também atendeu pedido semelhante do Ministério Público e declarou inconstitucional lei da Câmara Municipal de Sinop que prevê que “a Bíblia Sagrada deverá ficar, durante todo o tempo da sessão, sobre a Mesa, à disposição de quem dela quiser fazer uso”.
A decisão dos desembargadores foi unânime contra a presença do livro sagrado na sala de sessões. “Essa disposição afronta o comando constitucional supramencionado, na medida em que cria distinções entre os cidadãos, promovendo determinadas confissões em detrimento daquelas que não adotam referido livro, inibindo a liberdade de religião, e, por consequência, violando os princípios da laicidade do Estado e da liberdade de crença, impondo-se, pois, a declaração de inconstitucionalidade”, escreveu o relator, João Ferreira Filho.
Especialistas em direito religioso afirmam que MP está equivocado
Especialistas em direito religioso, Igor Costa e Thiago Rafael Vieira acreditam que o Ministério Público está equivocado ao ajuizar as ações assim como o Poder Judiciário. Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião, afirmou que as religiões fazem parte da cultura brasileira, com destaque para o cristianismo, cujos valores e símbolos estão presentes desde a fundação do país.
E essas lembranças estão por toda parte: mais de 2,5 mil municípios do Brasil têm nomes relacionados a santos ou símbolos religiosos; entre os Estados, por exemplo, há Santa Catarina e São Paulo; a maioria dos feriados brasileiros têm motivo religioso; os crucifixos estão presentes na maioria das repartições públicas — inclusive no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF); as notas de real tem a inscrição “Deus seja louvado”; e o próprio preâmbulo da Constituição Federal cita Deus. Há, ainda, cidades que têm símbolos de outras religiões, como o Bará do Mercado Público, em Porto Alegre, e a Pedra de Xangô, em Salvador, de matriz africana.
“São elementos da cultura, elementos que formam a nação brasileira. Tudo isso tem uma conotação religiosa, sociológica, cultural, antropológica”, resumiu Vieira em entrevista. “Então, esse é um primeiro elemento que a gente não pode desassociar: a religião tem espaço no ambiente público e o cristianismo tem espaço no ambiente público.”
Uma segunda observação de Vieira é que cabe exclusivamente às câmaras decidir como se organizar para realizar a sessão, respeitando o que foi decidido pelos vereadores. E, por isso, as ações do Ministério Público e decisões do Poder Judiciário se configuram como intromissões.
“Quando o Ministério Público se imiscui no poder municipal para tentar vedar a expressão da religiosidade local, isso sim é uma violação. Uma violência à ordem jurídica estabelecida muitas vezes há décadas naquela municipalidade”, afirmou Vieira.
Pluralidade e pluralismo religioso
Igor Costa, mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa, explicou a diferença entre Estado laico — que é o modelo brasileiro — e o Estado laicista, aquele que dificulta e impede que as pessoas professem suas religiões.
Para ele, o erro do Judiciário consiste em ignorar que, no Estado laico, a pluralidade religiosa é espontânea e não pode ser forçada. Em razão disso, ele citou o professor de Direito Constitucional da Universidade do Porto, Paulo Adragão, que diferencia pluralismo de pluralidade.
“O Estado não pode impor essa pluralidade religiosa. Por exemplo: se a totalidade das pessoas escolher apenas uma ou duas religiões específicas, o Estado não pode forçar artificialmente um pluralismo maior”, explicou Costa em entrevista a Oeste. É precisamente o caso das câmaras municipais: os regimentos foram aprovados por unanimidade ou maioria entre os vereadores e nenhuma pessoa se sentiu prejudicada pela leitura da Bíblia ou menção a Deus.
Mas, artificialmente, o Ministério Público e o Judiciário tentam fazer parecer que o rito estabelecido nas leis municipais ofende ateus e pessoas não cristãs. Todas as ações contra as leis municipais foram ajuizadas pelo Ministério Público. Não há registro de insurgência de vereadores ou de munícipes.
“A previsão da possibilidade de uma leitura da Bíblia antes das sessões é constitucional simplesmente porque uma maioria parlamentar sim decidiu”, avaliou Costa. “Ora, se depois um outro movimento parlamentar surgir no sentido de se fazer a leitura de um livro de uma outra religião, o Estado também tem que estar aberto a essa possibilidade.” Ou seja: o Estado laico aceita a pluralidade das religiões e não força um pluralismo.
Para Costa, a postura do MP e as decisões do Judiciário têm relação direta com “um movimento ideológico antirreligioso existente na sociedade civil que prega dogmas morais (por mais que supostamente seja contra dogmas morais) contrários aos dogmas morais majoritários da nossa sociedade”.
*Fonte: Revista Oeste