Abertas no último ano, empresas em nome de jovens de 20 anos ganharam R$ 18,2 mi em contratos de venda de equipamentos para o Exército
Empresas em nome de laranjas ganharam pelo menos R$ 18,2 milhões em contratos assinados com o Exército Brasileiro ao longo do último ano. Elas possuem controladores e endereços em comum e participaram de 157 licitações da corporação – em parte delas, competiram entre si.
Formalmente, as empresas estão em nome de jovens de 20 e 21 anos que moram no Rio de Janeiro e em Santa Catarina. Elas são controladas por um empresário e um contador alvos de diversas investigações da Polícia Federal (PF) por fraude em licitações em outros órgãos públicos.
Os contratos assinados com o Exército são para fornecer barracas, capacetes, cantis, coldres e outros equipamentos militares. Um ex-sócio confessou à Justiça e foi condenado por admitir o uso de laranjas junto ao contador dessas empresas.
Ele afirmou, sob condição de anonimato, que elas são criadas para participar de licitações do Exército com o objetivo de obter contratos ou apenas competir para dar cobertura a outras empresas, simulando uma concorrência. Ele também disse que servem aos interesses de um empresário que foi um dos pivôs da CPI dos Correios, em 2005, que desaguou no escândalo do mensalão.
O contador e os laranjas
O contador responsável por abrir essas empresas é Luiz Romildo Mello. Em junho, ele foi alvo da Operação Mobília de Ouro, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), que investigou o superfaturamento milionário e o uso de empresas ligadas a ele para fraudar licitações na Secretaria da Educação do Governo do DF.
Romildo tem um longo histórico de investigações e ao menos uma condenação por abrir empreendimentos em nome de laranjas para empresários que buscam direcionar contratos públicos.
Em outras investigações, Romildo apontou os reais sócios de empresas que haviam sido abertas por seu escritório quando foi enquadrado pela PF. As digitais dele estão em quatro empresas abertas entre 2022 e 2023 que ganharam contratos do Exército. Parte delas está sediada no mesmo endereço de seu escritório de contabilidade. Outras têm o próprio contador como sócio e no “nome fantasia” de uma das empresas.
São elas: Camaqua Comércio e Serviços, Duas Rainhas Comércio de Artigos Militares, Imperato Comércio de Artigos Militares e a Nova Prata Confecções. Nas três primeiras, têm se alternado como sócios dois jovens de 20 e 21 anos. Um deles é de Blumenau (SC) e o outro do Rio. Este chegou a figurar como beneficiário de auxílio emergencial durante a pandemia, mas o pagamento foi suspenso pelo governo. Nenhum deles foi localizado pela reportagem.
O maior contrato
Aberta em julho de 2022, a empresa Duas Rainhas está em nome do rapaz de Blumenau, e teve como sócios o jovem de 21 anos do Rio e um homem que foi condenado na Justiça justamente por abrir empresas ao lado de Romildo em nome de laranjas. Em dezembro, ela se sagrou como a maior fornecedora de bens materiais para o Exército, com um contrato de R$ 9,2 milhões para provisionar milhares de macacões às tropas.
Nos documentos da licitação, os dois atestados de capacidade técnica do empreendimento foram assinados por empresas de Romildo e de seu filho. O contador também assina os balanços contábeis da Duas Rainhas. Com esse contrato, a empresa chegou ao topo do ranking de maiores fornecedores de bens patrimoniais do Exército, o que envolve itens como capacetes, uniformes e mobiliários.
Concorrências entre amigos
A Duas Rainhas e a Camaqua participaram e levaram lotes de duas licitações do Comando do Exército em 2023. Atualmente, ambas têm como único controlador o jovem de 20 anos de Blumenau. Uma delas, a Duas Rainhas, fechou contrato de R$ 2,3 milhões para fornecer barracas de acampamento, ao custo de R$ 13 mil a unidade.
A Camaqua ofereceu cantis, capacetes, coldres e canecos de metal por R$ 580 mil. Juntas, essas duas empresas têm R$ 15 milhões em contratos com o Exército desde que foram abertas.
Em outras duas licitações, a Camaqua competiu contra a empresa Nova Prata, que está em nome de outro sócio, mas tem sido representada por Romildo em concorrências no Exército. A Nova Prata já teve em seu quadro societário um homem condenado criminalmente após admitir participação em esquema com o contador para abrir um negócio em nome de um laranja e tentar driblar cobrança de impostos.
A Nova Prata ganhou irrisórios R$ 47 mil em contrato, mas participou de oito licitações no Exército, duas na Marinha e uma na Aeronáutica. Uma terceira empresa, a Comercial Maragatos, levou R$ 3 milhões em contratos com o Exército. Ela teve como sócio o mesmo homem que admitiu o esquema de laranjas, mas hoje está em nome do jovem de 21 anos de Blumenau. A Maragatos é mais antiga e já teve diversos sócios e CNPJs desde que foi aberta, há mais de uma década. Participou de 49 licitações somente no Exército.
Cobertura
Com um orçamento de R$ 53 bilhões, o Comando do Exército tem contratos muito mais vultosos do que aqueles firmados com empresas ligadas ao contador Romildo. Apesar da pouca taxa de sucesso nessas licitações, as empresas participaram de mais de uma centena de pregões de valores milionários no Exército.
Um ex-sócio de diversos empreendimentos ligados a Romildo relatou, sob condição de anonimato, que essas empresas muitas vezes têm sido usadas para dar cobertura a outras que pertencem a terceiros. O próprio contador já foi condenado pela Justiça por essa prática e continua alvo de outras investigações.
Ele afirmou que os negócios mais recentes foram abertos a pedido do empresário Artur Wascheck, que é dono de, ao menos, dois empreendimentos no mesmo ramo de fornecedores do Exército. Ele foi preso em 2007, em meio ao escândalo de licitações nos Correios. Responde por ações judiciais até hoje e ficou famoso por ter mandado gravar um diretor dos Correios recebendo propina e admitindo ter aval do então deputado Roberto Jefferson (PTB), que seria um dos pivôs do mensalão.
A marca de Wascheck está nas empresas abertas por Romildo. Duas delas, cadastradas em nome dos jovens de Blumenau e do Rio, têm em seus registros um e-mail usado pelo empresário, inclusive, no âmbito de pregões do Exército. Uma das empresas de Wascheck foi penalizada pelo governo federal com inidoneidade em razão da não entrega de materiais aos Correios.
O que dizem os envolvidos
Procurado, o contador Luiz Romildo de Mello respondeu somente com uma mensagem na qual questiona: “Qual seu interesse nesses levantamentos?”. A reportagem insistiu para ouvi-lo sobre as suspeitas, mas ele não voltou a se pronunciar. Artur Wascheck Neto não foi localizado.
Em nota, o Exército afirmou que “os critérios de seleção de empresas para fornecimento de material” para a corporação “seguem o disposto na Lei de Licitações e Contratos”. “Os certames têm como fundamentos os princípios da administração pública, com especial atenção aos da legalidade e da impessoalidade.”
“Para se tornarem vencedoras dos certames, as empresas devem oferecer o menor valor para o bem em questão dentre todos os participantes, além de comprovar a qualidade do material fornecido, conforme as características estipuladas”, afirma o Exército.
O órgão também ressaltou que somente após a entrega dos produtos contratados, prontos para o uso, “as organizações militares contratantes poderão efetuar a liquidação da respectiva nota fiscal, com o posterior pagamento pelos produtos entregues, nos estritos termos da legislação vigente”.
Sobre os contratos levantados, o Exército afirmou que “está apurando os dados precisos para serem repassados” à reportagem. “Cabe ainda esclarecer que o Exército Brasileiro em todas as suas ações segue e cumpre a legislação vigente e reafirma o seu compromisso com a legalidade e transparência na prestação de informações à sociedade brasileira”, afirma.
*Fonte: Metrópoles