O ex-servidor do TSE fala pela primeira vez depois do vazamento de mensagens em que recebe ordens de um assessor de Moraes
Eduardo Tagliaferro, perito em crimes cibernéticos e ex-servidor do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), está no centro do escândalo que envolve o vazamento de mensagens de integrantes da Corte, divulgados pela Folha de S.Paulo. Segundo o jornal, Tagliaferro era responsável pela apuração, investigação e elaboração de relatórios encomendados pelo então presidente do TSE, ministro Alexandre de Moraes.
Citado em dez das 11 reportagens publicadas pela Folha, o ex-chefe da Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) passou de homem de confiança de Moraes a traidor do ministro, acusado de ser o responsável pelo vazamento das mensagens. Na quinta-feira 22, Tagliaferro depôs à Polícia Federal em São Paulo, em uma investigação aberta por ordem de Moraes.
Em entrevista exclusiva, Tagliaferro nega veementemente as acusações de que teria vazado os dados de seu celular. Ele acredita que as informações podem ter sido coletadas quando o aparelho foi apreendido pela Polícia Civil de São Paulo, em 2023, ocasião em que foi preso por violência doméstica. Tagliaferro nega ter cometido o crime.
O ex-servidor do TSE confirma que recebia ordens diretamente de Airton Vieira, juiz auxiliar de Moraes, e de outros juízes auxiliares — muitas vezes com caráter de urgência. Sobre os procedimentos do núcleo de Inteligência em que atuava no TSE, Tagliaferro menciona que, embora tivesse dúvidas sobre alguns dos processos, cumpria as ordens que lhe eram dadas. Alega que não utilizou meios ilegais para obter as informações. Ele também diz que nunca recebeu ordens diretas de Moraes. “Falei com o ministro três ou quatro vezes”, revela.
Tagliaferro lamenta sentir-se isolado, depois de sua exoneração, e afirma ter perdido contato com os colegas do TSE. “Estou sendo perseguido”, afirma.
Embora diga estar tranquilo quanto ao processo em que é testemunha, Tagliaferro admite temer possíveis retaliações. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Por que o senhor decidiu conceder essa entrevista?
Não conversei com ninguém até agora, mas com a Revista Oeste faço questão. Conheci a Revista Oeste pelo TSE. Nas mensagens divulgadas, digo que não encontrei nada da Revista Oeste. Sou ético. De fato não existia nada. Tanto é que o Airton Vieira diz: “Use sua criatividade. Pegue coisas mais ácidas”. Nem coisas ácidas havia.
O senhor vazou as mensagens para o jornalista Glenn Greenwald?
Não, porque conheço Alexandre de Moraes. Conheço antes de sua entrada no Supremo Tribunal Federal. Conheço bem sua personalidade. Eu jamais teria coragem.
Glenn Greenwald e Fábio Serapião, responsáveis pela série de reportagens, o procuraram?
Recebi contato do Fábio Serapião uma vez, querendo falar comigo. Não respondi. Depois, recebi contatos de vários jornalistas. Aliás, enviei para o STF as perguntas que o repórter da Folha de S.Paulo fez para mim.
O senhor chegou a ser preso sob acusação de violência doméstica. O que aconteceu?
Fui preso ilegalmente, porque não houve violência doméstica. O disparo da arma foi acidental. O processo que corre no município de Caieiras (SP) trata apenas de disparo acidental de arma de fogo. Todas as testemunhas são claras: não atirei. O laudo mostra que minhas mãos não tinham vestígios de pólvora nem de chumbo. Foi uma armação política. Não fui sequer para uma cela. Fiquei numa sala a noite inteira.
Foi nessa ida à sede da Polícia Civil que o senhor deixou o celular?
Até o momento de ir para a custódia, estava com meu celular. Quando passei meu celular para a mão do meu compadre, desbloqueei o aparelho. A gente jamais imaginaria que pudesse haver uma palhaçada dessa.
E o que aconteceu depois?
Fui para casa. Não deu nem 15 minutos, uma viatura chegou à minha residência. A polícia foi na minha casa atrás do celular enquanto eu estava a caminho da custódia. Fui conduzido sem mandado. Levado para uma delegacia de Franco da Rocha, e não de Caieiras, onde corria meu processo. Chegando lá, o delegado virou e disse: “Poxa, está todo mundo atrás desse telefone. O ministro [Alexandre de Moraes] ligou de Brasília pedindo o telefone. Esse telefone irá para São Paulo e, de lá, seguirá para Brasília”. Como um telefone, em seis dias, sai da Polícia Civil de Franco da Rocha, vai para a Polícia Federal de São Paulo, segue para Brasília, volta para São Paulo e depois retorna a Franco da Rocha? Isso ocorreu no dia 9.
Então, durante esses seis dias, qualquer pessoa que tenha tido acesso ao telefone pode ter pego esses arquivos.
Com certeza.
O senhor recebeu o celular de volta?
Sim. No mesmo dia, fui comprar um novo telefone. O celular apreendido era um iPhone 12. Comprei um iPhone 13. Conversei com um colega, contei que meu antigo celular estava apreendido. Ele ficou inconformado, me convenceu a irmos buscar o celular na polícia. O telefone estaria lá, disseram. Como o telefone foi a Brasília e voltou? Sem lacre, sem nada, o delegado devolveu meu celular. Um ou dois dias depois, fui fazer a transferência dos dados do telefone. Apenas queria os dados do celular antigo. Percebi que o celular antigo estava travando. Pedi que arrumassem, me disseram que não compensaria. Para me certificar de que nenhuma informação seria usada, destruí o telefone.
O que os policiais disseram ao senhor?
É estranho, porque no termo de liberação do telefone está explícito: a partir daquele momento, eu seria o responsável pelos possíveis dados sigilosos que nele continham. O telefone foi declarado como pessoal. Como sabiam que meu telefone tinha dados sigilosos? Em toda a investigação de Caieiras — inquéritos, boletins de ocorrência, relatórios policiais — não há nada mencionado sobre o telefone. Mas quem apreendeu o celular?
Não é uma tentativa de usá-lo como bode expiatório?
Não tenho dúvidas. Já ouvi gente dizendo que irão apreender meu telefone. Querem destruir o que tem lá dentro, mas nem tenho material. Nunca iria vender meu telefone. Ali havia não só coisas do TSE, como documentos, fotos de crimes, fotos de processos civis. Há documentos sigilosos de vários tribunais. Não usei meu telefone exclusivamente pro TSE. Meu telefone é pessoal. Perdi tudo.
De quem o senhor suspeita?
Não posso afirmar que foi alguém da Polícia Civil. Não quero acusar ninguém. Eu não fui. Isso asseguro.
Qual seria o objetivo dos vazamentos?
O material pode ter ido para as mãos de alguém, para usá-lo no momento certo. Ontem, houve um boato segundo o qual eu iria tentar vender meu telefone para a revista Veja. É absurdo. Se vasculharem a minha vida, verão que meu padrão de vida despencou depois que fui para Brasília. Ali não era minha fonte de renda principal. Tenho outros negócios. Nunca tive relação com política. O interessante é o seguinte: as mensagens que estão lá são de fato do meu telefone, não tenho como negar. Se você vir todas as conversas e os áudios, dá para ver que sou cauteloso. Faço essas brincadeiras, porque no ambiente de trabalho a gente brinca, não tem jeito. Sempre tive dúvida dos procedimentos. Mas quem vai dizer não para o homem?
O senhor atuou como chefe de um dos departamentos mais importantes de Inteligência?
Fui chefe do departamento de fake news do TSE. Coordenei também o Núcleo de Inteligência Nacional, das polícias. Integrei a Comissão de Segurança Cibernética e atuei como secretário da Comissão de Regulamentação das Redes Sociais.
Como era a relação do senhor com Alexandre de Moraes?
O ministro é muito blindado. Se falou comigo três, quatro vezes, foi muito. Então, as coisas vinham, não eram para mim. A assessoria monitorava, de fato, o que era o objetivo dela. Via tudo que estava acontecendo: movimentação em rede social, os principais alvos… Quando cheguei, os alvos já existiam e eram monitorados. Apenas dei continuidade. Agora, a interpretação dos relatórios, se havia crime ou não, quem decidia era o ministro. Eu não tinha poder de decisão nenhum. Eu só recebia ordens.
O senhor participava do grupo de WhatsApp dos inquéritos?
Eu não fazia parte. Havia um grupo só do STF, pelo que percebi. Era um grupo deles. E Alexandre de Moraes integrava esse grupo.
Como os relatórios eram produzidos?
Eu recebia o material por WhatsApp, porque o ministro era tanto do STF quanto do TSE. Existia certa urgência para atuar, para intervir, porque o discurso sempre era de que iria ter golpe, que iria ter alguma coisa desse gênero. Então, o medo era de que, se não fosse ágil, algo poderia acontecer ao país. O trabalho era muito rápido. O relatório, de minha parte, era oficial. Se havia mensagens de ódio, informava. Havia denúncias anônimas, mas também houve denúncias que vinham do próprio ministro.
Em uma das trocas de mensagem, o senhor manifesta preocupação com o envio dos relatórios do TSE pedidos por Airton Vieira e sugere a criação de um e-mail que enviasse a denúncia à Corte Eleitoral. O senhor chegou a criar esse e-mail?
Não. No TSE, havia e-mails dedicados a receber denúncias. Gosto das coisas corretas, entende? Mas não posso questionar uma coisa que não conheço, como a metodologia do tribunal. Caí de paraquedas ali dentro. Minha função era pegar um objeto, ver se era crime. Não é rito. Isso não é comigo. Me formei em Direito há mais de 20 anos. Não estou nem atualizado com relação ao Código de Processo Civil, ao Código de Processo Penal — que é o que determina os ritos, as formas processuais de agir.
O senhor recebeu alguma ordem absurda?
Prefiro não responder à pergunta.
Já se negou a cumprir alguma ordem?
Nunca, porque não tinha como. Mas, de coração aberto, com a consciência limpa, posso dizer que poupei muita gente. Sei que fui e sou massacrado pela direita. No entanto, não tenho apreço por nenhum lado político. Se fosse me classificar como uma pessoa política, seria de direita, jamais de esquerda. E, assim, evitei prejudicar muita gente, inclusive a própria Revista Oeste. Eu falava: “Não, isso aqui não”.
Como ocorreu a tentativa de incriminar a Revista Oeste?
Na verdade, não sei a intenção. Não sei a origem. Eu era o cozinheiro. “Olha, levanta esse material para mim e vê o que tem”. Nas falas publicadas pelas reportagens, digo que encontrei apenas material jornalístico.
O senhor entende o desespero das pessoas que foram perseguidas por Alexandre de Moraes?
Sei que meu trabalho fez parte disso, mas não tive opção. Eu era um funcionário. É como se fosse um cozinheiro e o dono do restaurante falasse assim: “Quero que você faça feijoada hoje; coloque beterraba na feijoada”. Suponha que respondi: “Ah, mas beterraba não”. E o chefe respondeu: “Não. Põe beterraba”. Está bem, colocarei a beterraba.
O TSE e o STF acionaram o senhor, para investigar os atos do 8 de janeiro?
Houve um pedido do STF para a realização de um levantamento de dados dos manifestantes. Ficha civil, vamos dizer assim. A equipe de investigação produziu esses documentos. Foram semanas de trabalho. Cerca de 1,5 mil pessoas estavam na lista. Eram as pessoas que foram presas.
Acredita que houve tentativa de golpe no 8 de janeiro?
Esse tipo de golpe, na minha concepção, é concretizado por militares. É o que sempre estudei na história. Isso não ocorre pelas mãos dos civis, que estavam desarmados. O problema todo foi o quebra-quebra ali. Invadir um prédio público é errado.
O senhor recebia a ordem e repassava para a sua equipe. É assim que funcionam as investigações?
Sim. As coisas mais urgentes vinham para mim, e eu as repassava para minha equipe. Havia monitoramento, produção de relatórios… Era impossível, como ser humano, analisar sozinho a ficha civil de 1,5 mil pessoas. Pelo volume, acredito que não teve nem tempo de ver se os presos eram “peões” ou “presidentes”. Não dava.
Os senhores chegaram a realizar o levantamento de contas?
A quebra de sigilo e as ordens de prisão não eram realizadas por mim. Ocorriam pelas mãos dos juízes auxiliares e pelo ministro Alexandre de Moraes. Minha equipe apenas enviava os links, dizia quais perfis eram oficiais, quais eram de pessoas físicas, quais eram de fã clube. A determinação não era minha.
Como funcionava o núcleo formado por coronéis da PM?
O núcleo era de “Inteligência”. Esse núcleo não teve muita utilidade. Servia apenas para informar: “Olha, não tem barreiras nas estradas. Não há caminhões. Não tenho incêndio nas ruas”. Não há setor de Inteligência no Brasil.
Qual é o sentimento do senhor com relação a Alexandre de Moraes, antes e depois dos diálogos que foram vazados?
Sempre tive admiração e respeito pelo ministro. Ele é extremamente inteligente em questões relacionadas ao Direito e muitas das suas decisões foram sensatas. Falaram que fiquei magoado com ele por causa da minha prisão. Mas não me importei com a exoneração, porque não queria mais ficar ali. Queria voltar para a minha casa, para a minha família. Tenho duas filhas pequenas e senti muita falta delas. E não era a primeira vez que eu tinha pedido exoneração. Há até uma figurinha de WhatsApp, com a minha cara, dizendo assim: “Vou pedir exoneração”. Tiravam sarro da minha cara. E até ontem não tinha mágoa nenhuma do ministro. Mas a forma como Alexandre de Moraes está agindo comigo… Sim, estou chateado. Virei desafeto dele.
O senhor tentou manter contato com o ministro?
Não. Contudo, na época da apreensão do meu telefone, informei para o gabinete do ministro no STF sobre o que havia acontecido. Disse mais de uma vez que estava preocupado. Alexandre de Moraes sabe de todas essas coisas. Quando comecei a ler as reportagens, entrei em desespero. Pensei: “Pô, vão me culpar”. As pessoas ali se conhecem há anos. Eu, que fazia parte da equipe, estou sendo investigado. O cara que só cumpria ordens é o vilão.
As ordens vinham diretamente de Airton Vieira?
Sim. É exatamente o que está nas reportagens. Falava sempre com Airton Vieira. Jamais tratei com Alexandre de Moraes. Pessoalmente, conversei com o ministro três ou quatro vezes na minha vida.
O que o senhor acredita que virá a seguir?
Não sei nem o que tem lá. A gente tinha tanta conversa, até como amigos. Não posso te dizer. O que não posso negar é que ali nas mensagens está a minha voz. Agora, comprei um novo telefone. Procurando as conversas aqui no WhatsApp, percebo que as fotos de alguns dos meus contatos nem aparecem mais. Fui bloqueado pelos funcionários do STF. Estou seguro da minha inocência. Na verdade, não estou como investigado; estou como testemunha. Estou despreocupado. Não fiz nada. Estou preocupado apenas com uma possível retaliação.
*Fonte: Revista Oeste